sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O tombo

Pois é. Todo mundo cai ou já caiu, fraturou uns ossinhos. Mas eu, euzinha, nos meus setenta e dois, cai muito, nunca fraturando nem unzinho. É, nesta altura da vida cair não é uma boa pedida. Os ossinhos vão ficando fraquinhos, porozinhos... Nem é bom pensar. Há uns quatro meses, no dia dez de maio, cai na sala de casa. Trombei com a cadelinha Pagu quer veio felizinha ao meu encontro há uns não sei quantos quilômetros por hora. Não deu outra... perdi o equilíbrio e fui caindo em câmera lenta. Como doeu.! Já no hospital, radiografias tiradas, nada, não tinha fraturas. Voltei pra casa e, por alguns dias curti muitas dores, mas andei, subi escadas e tudo mais. E a dor lá, forte pra cachorro. Retornei ao ortopedista que, mais acuradamente verificou que eu havia fraturado o quadril. Não necessitaria de cirurgia ou gesso. Teria que ficar com a perna imobilizada por mais de noventa dias. É, os ossinhos, a idade... Vai idade.............. Foi uma mordomia daquelas:- café, almoço, lanches, tudo na cama... As horas, os dias demoravam para passar. Me atualizei nos noticiários, desenvolvi um pouquinho a virtude da paciência, me aprimorei na arte do tricô. Fiz, nada mais, nada menos do que dez blusas de lã para as minhas três meninas, que chincraram com isso. Também li muito, fiz muita palavra cruzada. Tomo muito cuidado para que meu priminho Alzhaimer nunca se aproxime. Tudo o que nos acontece é lição e temos que apreendê-la e utilizá-la.
De agora em diante vou tomar mais cuidado para não trombar com nada, muito menos com a Pagu. Cair, nem nas esparrelas da vida ou nas mentiras. Estou de olho!!!!!

Pedido de desculpas atrasado

As recordações me vêm, de tempos em tempos; algumas estão tão escondidas que me assomam à memória e desaparecem como se fossem sem importância; mas voltam, porque é preciso colocá-las no papel, deixá-las para a posteridade... Principalmente quando deixam um gostinho de arrependimento. Sabe, Nelson, foi o que aconteceu esses dias. Lembrei-me de você, meu primeiro namoradinho. Lá se vão mais de cinquenta e oito anos... Eu com quatorze e você com dezesseis. Naquela idade tudo parecia novidade, tudo era bom, bonito e precisava ser provado. Era maio, o mês em que todas as noites íamos a Igreja levar flores para Nossa Senhora. Eu escapava do ritual e ia me encontrar com você às escondidas. Ah! Se meu pai descobrisse... Levaria umas boas palmadas... Mas, aos poucos fui enjoando da brincadeira, pois você era um garoto muito grudento. Ainda bem, porque numa das noites, ao terminar a reza, desci com a Professora Maria de Lourdes que se hospedava em casa na época das aulas. Quando fui chegando no portão, lá estava meu pai me esperando com a cinta na mão. Que susto levei! Não apanhei; ele não disse nada, mas a sua fisionomia dizia tudo. Percebi que o caso estava na hora de acabar. Não tive dúvidas. Dei o bolo, giria da época. Você, inconformado, achava que eu já estava interessada em outro. Não era verdade. Enjoei, mesmo. Lembro-me que depois, por algumas vezes nos cruzamos na rua São Luiz e que, quando estávamos na mesma calçada, você imediatamente passava para a outra, para não me cumprimentar ou olhar para mim. Percebia que sua mágoa era grande, mas, imatura como era, nem me importava ou avaliava a profundidade do seu sentimento. O esquecimento viria e curaria tudo. O tempo sempre foi um bom remédio. Hoje, avalio com um pouco mais de profundidade, muitos dos atos que pratiquei. Não sei se você ainda pertence ao mundo dos encarnados. Mesmo assim, esteja onde estiver, espero que receba, capte esse pedido de desculpas tão tardio. Me perdoe, Nelson. Talvez ainda nos encontraremos e riremos muito dessa etapa de nossas vidas. Pois é, todos os que passam por nós nessa caminhada terrena deixam algo de si. Quase sempre colocamos tudo no fundo do bau de memórias e lá fica tudo o que achamos não ser tão relevante. Mas tudo na vida o é. Espero que seja feliz e se lembre dos selinhos trocados ingenuamente atrás da Igreja. E aqui vai um para selar essa memórias...

Há setenta e dois anos

Há setenta e dois anos, um anjo do céu chegou pra mim e disse:
- Olha! Está na hora de você descer de novo pra Terra. A mordomia acabou. O povo está lá te esperando.
- Puxa, anjo! Agora que eu estou aprendendo a me controlar? O pessoal que me espera vai me por a perder; conheço cada um deles. Vai ser uma paparicação sem fim. Aí, vou crescer me achando a dona do mundo – orgulhosa, petulante, vaidosa – não vai dar certo. Além do mais, com aquele povo todo cobra nos conhecimentos, vou acabar tendo que estudar muito pra honrar cada um deles. E ainda tem aquela coisa: vai chegar o momento que cada um deles vai me deixar na mão; vão todos voltar aqui pra cima. Vai ser chato pra caramba!
- É, mas você está precisando ver a luz lá de baixo de novo. Precisa crescer, evoluir, se controlar. E, afinal,trato é trato. Pode se mexer. Força, que vai dar tudo certo como foi combinado.
- Tá bom anjo! Mas vai ser duro ter que ver a luz de lá do jeito que está: ar poluído, pessoal estragando o Planeta, pessoal desperdiçando tudo, gente passando fome. E mais outra, vou ficar doente, vou ver o meu pessoal sofrer, meus parentes, meus amigos. Não sei, não.
- Você tem que ver as coisas por outro ângulo. Vai reencontrar tantos amigos, tanta gente boa, aqueles que sempre te quiseram bem e que vão te ajudar a conviver com os que não são tão afim. Olha, você vai cantar, vai dançar, escrever textos, ensinar seus filhos e seus netos a serem pessoas melhores. Quanta coisa! Agora vou te contar um segredo. No futuro, a tecnologia vai estar muito avançada. Vai ter um aparelhinho chamado computador; você vai aprender a usá-lo, vai ter um blog.
- O que é blog?
- Ah! Quando chegar o momento você vai saber. Pelo blog e pelos emails...
- O que é isso?
- Calma, tudo virá a seu tempo. Através desse aparelhinho, você vai poder passar a história de sua vida para muitas pessoas, vai mandar muitos recados sem precisar sair de casa. Você vai gostar. Além de tudo, os que reencarnarem depois de você vão te dar aquela força.
- Bem, anjo, se não te outra opção, lá estou indo de novo. Quantas vezes já retornei?
- Agora não vem ao caso. Desça e cumpra sua obrigação. Quando precisar de mim, me dá um alô que eu não vou te deixar na mão. Você vai conseguir. Vá com Deus.
Pois é, e aqui estou eu, escrevendo, setenta e dois anos depois, e passando pra vocês, como foi minha última conversa com meu anjo antes de reencarnar mais uma vez.