quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A jardineira

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A jardineira saía sempre do seu ponto inicial, dirigida pelo Seu Miguel motorista. O destino: a cidade grande. Partia sempre lotada, pois este era o único meio de locomoção do vilarejo. No primeiro banco – o do motorista – havia dois assentos do lado direito e um do lado esquerdo. A jardineira - um ônibus semelhante aos antigos bondes abertos - era apelidada de costela de vaca, porque lembrava a ossada da pobre ruminante. Eu, nos meus parcos treze anos, fazia o antigo ginásio e me utilizava desse meio de transporte para chegar até a escola. Tinha lugar cativo, sentava-me sempre do lado direito de Seu Miguel. Nas segundas-feiras aconteciam fatos singulares no decorrer da pequena viagem: mesmo abarrotada de passageiros – alguns, inclusive, ficavam dependurados nos estribos – até determinado trecho do caminho, o assento que ficava do lado esquerdo do motorista permanecia vazio. Isto até que subisse à Jardineira, a dona Maria, uma senhora toda espevitada e tagarela. Na hora, o semblante do Seu Miguel se transformava e ele abria um sorriso matreiro, como que imaginando coisas... De quando em vez, suas coxas – a dele e a dela – inexplicavelmente, roçavam-se. Eu, na minha ingenuidade, imaginava o que aquela mulher tanto fazia na cidade. E lá se vão mais de cinqüenta anos. Quando me lembro desse fato, sempre vem à minha cabeça aquela pergunta que não quer calar: ¨O que será que a dona Maria ia fazer na cidade todas as segundas-feiras?

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terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A Boliviana

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Todas as tardes, quando o sol buscava o seu travesseiro para dormir, ela saia. Não era bonita e já devia ter mais de quarenta anos. Com seu manteaux cor de ferrugem, sapatos altos, bem pintada, abria o portãozinho de sua casa e subia a rua. Não sei a que horas retornava. Naqueles tempos, na vila onde morávamos não havia iluminação nas ruas. Era uma escuridão só! Tanto que poucos se atreviam a sair após às sete da noite, principalmente moças e senhoras. Eram assediadas por homens que passavam de carro pela avenida próxima. Boliviana, como era conhecida por todos, era casada e mãe de uma filha mocinha e dois filhos adolescentes. Seu marido era um militar reformado, muito educado; parecia estar sempre em paz. De vez em quando, ele e os meninos convidavam o meu filho para apanharem amoras - não longe de casa - numa pracinha arborizada onde outrora fora pouso de tropeiros. Passou-se o tempo, nos mudamos para um outro bairro. Nunca mais a vi, ou soube de sua sorte. Só sei que, quando o sol se punha no horizonte, toda elegante e maquiada, ela deixava a sua casa. Aonde ía? Ninguém sabia ao certo. Porém carregava consigo as bençãos do marido, que certamente ornava o seu bestunto com uma enorme coroa de chifres.
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